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Primeiro só havia escuro e frio. Silencio era tão intenso que eu poderia ouvir o fluxo de minhas arteiras... Bem, se houvesse fluxo eu ouviria. Mas nada havia. Nada de sangue, nada de coração pulsante. Eu mal podia me sentir. Minhas mãos, minhas pernas, meus joelhos e cotovelos, as pontas de meus dedos... Estavam ha muito perdidos e distantes demais para serem sentidos. Não havia corpo. Não havia razão. E de algum modo não havia eu. Ao menos foi o que me pareceu naqueles instantes de morte congelante.

Com o tempo de um raio ao tocar o chão, toda aquela inexistência se desfez. Ao som de uma cantoria sussurrante e incompreensível eu voltei ao consciente, embora ainda estivesse perdida na escuridão, privada de qualquer sensação. Mas aquela voz de algum modo me arrastava para longe da inexistência, como uma luz a me guiar para o fim do túnel. Algo em minha limitada consciência me fisgava e me fazia relutar. Errado, era a sensação que vibrava ao redor de seja lá o que eu era. Mas a voz era mais alta que o vibrar desconfortável da sensatez. A voz era determinada e orgulhosa. Ela não me perderia. Escolha não era algo que estava oferecendo. A sensatez me puxou com mais força, e me fez sentir como um peixe ao ser puxado por um teimoso pescador. A voz se aflorou, a música se tornou mais eloqüente embora intraduzível, no entanto o tom raivoso era inconfundível. Algo se apossou do que eu era, me fez lembrar mãos agarradas a meus ombros, me fez lembrar de ser puxada para fora da água após estar mergulhada. E como se eu estivesse afogada a quilômetros de profundidade, a musica me arrastou para a superfície. Rápida e clara.
– Acorde, acorde... Seja como for – a voz finalmente disse algo que eu compreendia, embora ainda soasse como uma cantoria e Deus aquilo era tentador.
Ainda havia silencio, ainda havia escuridão e o frio me lambia com fervor. E em um instante tudo se desfez. Em um instante eu despertei... E gritei. Gritei contra o soco que me fora dado dentro do peito. Um após o outro, uma série de bancadas violentas e ritmadas dentro de minha caixa torácica. Gritei quando os ossos de meus braços latejaram quando foram movidos pelo choque. Lá estavam meus cotovelos queimando ao serem flexionados, ameaçando se quebrar caso eu voltasse a lhes incomodar. Lá estavam meus joelhos rangendo ardentemente quando encolhi minhas pernas ao novo soco que me fora dado. Até as pontas de meus pés latejavam por mais imóveis que eu as mantivesse. Lá estava meu corpo. Lá estava eu ardendo e doendo, lamentando por não ter seguido a sensatez, pranteando a saudade da inexistência.
Um novo golpe, mais intenso e certeiro me fez sufocar. E contrariada eu fiz algo que embora fosse natural e familiar, era agora uma agonia quase impossível de suportar. Com a boca aberta eu inspirei involuntariamente um enorme fôlego, mas o que abriu caminho aos socos por minha garganta, rasgando percurso até meus pulmões não era o fresco e consolador oxigênio. Fogo expandiu aquele órgão que me parecia morto. Toda sua extensão ardeu, e a sensação se alastrou por minhas costelas. Ah lá estavam elas a conter o fogo que se alastrava por meus pulmões e o tambor a me torturar internamente. A cada nova pontada, ardência e fisgada um novo pedaço de mim era descoberto, reconhecido, e desprezado. Eu não queria nada daquilo. Eu não queria aquele corpo acabado que só conservava ossos, tendões e órgãos doloridos em uma estrutura em frangalhos.
Um soluço se embolou em minha garganta incinerada escapando por entre meus dentes cerrados como um lamento infantil e exausto. E um riso respondeu meu lamento exaurido.
– Vejas só, voltar à vida ao mesmo estilo da primeira vez. Um bebê chorão. – o tom de deboche era latente assim como seu sotaque inglês – tão clichê
Sua voz me arrastou um pouco mais para a realidade ao redor. Eu ainda não ousava olhar ao redor, mas escutar era impossível de evitar. Havia passos típicos de salto altos, se eu me esforçasse saberia a marca e o tamanho, mas os passinhos de ratos não muito próximos fizeram minha coluna estremecer em repulsa. Havia alguma goteira não muito longe e o som dos corvos era agonizante. Os cheiros também eram inconfundíveis. Terra molhada, folhas secas e lama se misturavam a algo úmido e férreo que não reconhecia, mas estava próximo demais junto com o odor fétido de fuligem. Eu odiava fogueiras.
Os passos voltaram a se sobrepor sobre o universo invisível ao meu redor, próximos demais, eles estavam ao lado de minha cabeça e colidiam contra a terra lamacenta. Um som de impaciência.
– Querida não temos a noite inteira, então trate de abrir esses olhinhos porque você não é a bela adormecida e eu não faço o tipo príncipe encantado – a voz era amigável, mas a ordem ali estava implícita, e novamente era tentador demais. Obedecê-la era uma necessidade, que prometia mais dor caso eu negasse.
Doeu, seria uma mentira se não mencionasse tal fato. Relutante eu ergui minhas pesadas pálpebras piscando contra as ardentes lagrimas que ali se alojavam. A primeira vista tudo era um borrão, apenas cor e nada de forma. Após duas ou três piscadas o foco foi se formando, ao longo de sete a nove piscadas eu já enxergava. E Deus que visão inesperada!
Lápides, terra revirada, uma pá, restos de uma fogueira, um cadáver de um galo, cruzes ao longe e uma garota excêntrica, é o que me rodeava no mundo dos vivos. Eu pisquei atordoada enquanto observava a garota acima de mim, cada pé de um lado da minha cabeça o corpo curvado para me observar de perto. Eu lancei um rápido olhar para suas botas de couro e salto de 10 centímetros, antes de encarar seu rosto obscuro pelas sombras que a luz de uma lanterna lançava. Sua pele estava escondida sobre uma fina camada de base tornando-a pálida sob a baixa luminosidade, os olhos verdes limão delineados e esfumaçados de preto só favoreciam o efeito. Seus lábios finos e vermelhos estavam curvados em um sutil sorriso de contentamento. Você pode ver esses sorrisos em qualquer lugar que haja alguém presunçosa o bastante com algo que criara ou realizara. É o sorriso da dona do cachorro campeão. É o sorriso do agente de uma celebridade que vale um bilhão. E aquele sorriso, algo sobrenatural me avisava, era dirigido a mim.
– Bem vinda cara mia! – ela disse movendo os lábios lentamente, fazendo o piercing cintilar como uma jóia, e não como a bijuteria barata que era.
– Bem vinda? Eu estive morta por acaso para ser bem vinda em um... Que raio de lugar é esse? – meu rosto formigou enquanto eu me contorcia em uma careta pelo mau cheiro.
– Bem, sim e já não era sem tempo – ela disse se afastando um pouco, mas sem sair de minha vista – daqui a pouco era eu que iria acabar caindo morta. Morta de Tédio. – ela revirou os olhos e quando voltou a me encarar sorriu desculpando-se de uma ofensa que eu mal entendera – não me leve a mal eu sei o quão difícil deve ser se reintegrar e tudo o mais, mas convenhamos não é o espetáculo mais emocionante para se assistir.
Eu a encarei com olhos semicerrado de confusão. O que era aquele turbilhão de palavras que saiam daquela boca bem delineada em um sotaque inglês carregado e uma energia atordoante? Eu sabia que ela estava falando português, eu entendia as palavras que ela proferia, mas o significado delas para aquela situação me fugia.
– O que foi que disse? – eu murmurei asperamente, logo em seguida tossindo violentamente o que intensificou os socos internos.
– Deus, eu sei que é desorientador, mas a sua lerdeza já é ridícula – ela disse colocando as mãos sobre os quadris, como alguém que eu não conseguia lembrar fazia. De qualquer modo não me escapou da mente o fato de que ela nem se importou com minha agourenta tosse digna de uma pneumonia letal.
Embora irritada permaneci parada, ali deitada ao duro e lamacento chão, as mãos agarradas a terra, sujando minhas unhas com folhas e pedrinhas enquanto eu me segurava para suportar a dor. Afinal o que mais eu poderia fazer?
– Você não se lembra de nada? – ela me perguntou quando eu nada disse ou compreendi.
Meu silencio foi uma confirmação a sua suspeita, e ela confusa e insegura coçou a cabeça enquanto pensava e andava ao meu redor. Não era o melhor dos sinais. Seja lá o que estava acontecendo, eu não estava bem. Mas me esforcei. Esforcei-me para, segundo as palavras dela, me lembrar. Mas do que especificamente? Eu nem tinha um ponto de partida, uma memória esquecida que me guiasse. Minha mente estava vazia.
Quem eu era? De onde vinha? Perguntas estúpidas e previsíveis cujas respostas em minha mente não existem. O tambor se intensificou sob minhas costelas conforme eu me apavorava. Quem diabos eu era?! A resposta estava ali, enterrada sob uma nevoa de vazio concreto, e por mais que eu cavasse algo, duvidava que conseguisse alcançar. Era como pegar o ar com as mãos. Você sabe que ele existe, embora não o veja e jamais o capture, porque você o sente.
– Porque não se senta para podermos conversar melhor? – ela perguntou calmamente – não é lá muito agradável eu aqui em pé e você ai deitada, sinto-me como se estivesse falando com um defunto... Oh droga, que péssimo trocadilho. Não foi a intenção juro – ela disse naquele seu modo apressado de falar, os olhos piscavam se desculpando.
– Trocadilho? Com o que? – falei sem obedecer a seu pedido, embora a tentação de fazê-lo estivesse ali, rodeando-me.
– Ora, defunto... Você ressuscitada. Qual é? Vamos lá, seu senso de humor não pode ter morrido. Ou melhor, morreu mais eu o trouxe de volta. Eu trouxe você toda de volta – ela disse velozmente, e lá estava o sorriso dona do cachorro campeão.
– Alem de beber, o quê você fumou? – eu disse sem pensar, afinal eu não queria pensar nas maluquices que ela proferia naquele jeito estranho de falar.
– Deus, de todos eu fui logo levantar a mais lerda do tumulo – suas palavras foram abafadas por suas mãos, já que agora enterrava o rosto nelas e resmungava sem parar, às vezes se culpando e se arrependendo, às vezes simplesmente me ofendendo.
A garota excêntrica após alguns minutos se recompôs em uma postura controlada, ajeitando o casaco de couro o qual bagunçara em sua crise de frustração irritada. Ela inspirou profundamente e se voltou para mim, com ares decididos e centrados.
– Ora pois, sente-se ao menos! – disse quando notou que eu ainda permanecia deitada, imóvel como um cadáver, e algo em mim riu com uma piada que eu mal notara.
Novamente doeu. Era como uma onda que escorria de suas palavras e me empurrava e puxava, tragando-me em uma correnteza que me arrastava para ela. Uma força que comprimia meu ser em um desejo avassalador, obrigando-me a obedecer. E essa gana sobrenatural doía, não tanto quanto a dor de obedecer.
Em um movimento ágil eu me pus sentada e toda a minha coluna estremeceu-se violentamente com a dor que irrompeu do topo de meu pescoço e escorreu quente e veloz até meu cóccix. Dizer que chorei em lamento e angustia seria redundância.
– Mas que bela merda de pessoa eu sou – ela resmungou enquanto corria até mim para me amparar, ajoelhando-se a minha frente, no entanto ela estacou, as mãos pairando no ar a centímetros de mim.
Vi em seu rosto o receio de me provocar mais dor ainda. Medo e confusão lhe tingiam a face
– Merda eu me esqueci dos efeitos colaterais. Perdoe-me minha memória avoada, é que esta é minha primeira vez e alguns detalhes me escapam da mente.
– Sua primeira vez? – eu resmunguei entre lagrimas, esforçando-me para não me mexer nem um centímetro, já que movimento equivalia à dor no momento.
– Bem não, quer dizer... É. Veja bem eu já ressuscitei outras... Almas antes de você. No entanto essa é minha primeira vez ressuscitando um humano – ela esfregou o braço e desviou o olhar, enquanto eu processava o que falar.
– Deixe-me entender... Eu estou morta, ou melhor, estivera morta e você me trouxe de volta? – ela assentiu pacientemente – mas porque?!
Ela piscou confusa com minha pergunta.
– Como assim por quê? Por acaso preferia o status de morta?
Eu neguei com um aceno de cabeça, amaldiçoando-me por fazer aquele movimento, mas no fundo gostando da sensação familiar que me tomava. Aquele era um gesto típico meu. Ao menos era o que eu lembrava.
– Por acaso estava fazendo melhor uso do seu tempo do outro lado? – ela perguntou e eu novamente neguei – então estamos de acordo, melhor morto-vivo do que morto-morto. – ela esfregou as mãos com energia como se já tivesse resolvido todo o episodio – alias do que se lembra do outro lado afinal? – ela se curvou para mais perto de mim, os olhos cintilando em curiosidade infantil.
– Nada.
– Tudo bem, leva algum tempo para as memórias voltarem...
– Não, você não me entendeu. – eu me apressei em me corrigir – o outro lado, não é nada. Não tem nada. Ao menos não para mim. Ao menos é do que me lembro. Um grande e imenso Nada.

Capítulo 3

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