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Ela me encarou com um rosto serio e pensativo, no fim encolheu os ombros com o ar de decepção
– Bem vejam só se isso não seria uma decepção para alguns cristãos? – ela abriu um sorriso torto, totalmente presunçoso – no entanto mais um motivo para estar grata comigo.
Eu concordei com um aceno e novamente torci o nariz para a dor. Ela notou e afagou as costas de minha mão com as pontas dos dedos, eu até teria gostado se o toque não fosse tão desconfortável.
– Não se preocupe a dor é temporária, afinal passou muito tempo parada. – ela disse solidaria.
Eu olhei ao redor, piscando forte contra a escuridão para distinguir as formas a minha frente, e a primeira coisa que se mostrou claramente foi o morro de terra não muito distante, ao pé de uma Lápide.
– Aquilo não é...
– Seu tumulo? – ela apressou-se a encontrar as palavras pra mim – sim, é ele sim. E devo admitir, seus pais devem gostar muito de ti, para tamanho investimento. Seu caixão deve ter custado um considerável dinheiro e essa lápide então, sabia que é feita de mármore?
– Como eu poderia saber se já estava morta e muitos palmos abaixo da terra quando ali fui posta? – inesperadamente eu estava irritada, apavorada e irritada.
Seus dedos se afastaram de minha mão, e um olhar rápido me mostrou um rosto tomado por espanto e indignação. Eu sabia que estava errada, que ela não merecia aquelas palavras, no entanto eu não eu não iria voltar atrás. Algo novo me tomava, diferente da musica que me resgatara, ou da sensatez que me segurara. Era quente e envolvente. Deslizava por meus músculos doloridos como um véu morno e macio, anestesiando a dor e despertando instintos. Em instantes o véu me cobria por completo, abaixo da superfície de minha pele, ele se instalava por todo o lado. Quente e voraz, infiltrou-se em minha mente com desejos vis.
– Que bela criatura você esta me saindo. – ela resmungou levantando novamente, batendo a terra grudada na calça.
Eu cerrei os dentes enquanto o véu se aquecia irritado por aquelas palavras.
– E então? Lembra-se de algo ou ainda é uma defunta débil mental? – novamente suas mãos estavam sobre os quadris e ao fitar seu rosto notei que a paciência estava bem longe dali.
Eu me esforcei novamente, mas a muralha estava ali, intransponível embora translucida o bastante para se notar que havia algo ali do outro lado. Algo me dizia que bastava uma palavra para derrubar o obstáculo, uma palavra mágica para abrir caminho.
–Mas que merda, os outros não se mostraram tão lerdos, de fato não tinham muito do que lembrar, na verdade não tiveram um final tão violento... – ela dizia enquanto se virava e se dirigia até uma enorme e atulhada bolsa que jazia próxima ao cadáver, agora fétido, do galo. Ela ergueu-se e voltou a mim, trazendo junto ao peito uma pasta de aparência oficial.
– Eu roubei isso aqui quando resolvi que seria você a quem eu iria reviver – ela ajoelhou-se ao meu lado e abriu uma pasta que transbordava de recortes de jornais, fotos, diagnósticos, obituários e testemunhos – a segurança da delegacia, sinto em dizer, é lamentável. Assim como a mente manipulável do policial de plantão.
Ela abriu um radiante sorriso amigável, e me pareceu muito com o Gato Roxo da Alice, aquela do País das Maravilhas. Ficamos ali em silencio por um longo tempo, ela sorrindo e eu estática. Por fim ela bufou impaciente e girou meu rosto pelo queixo, voltando-o a pasta.
–Veja! Essa é a sua vida, bem... Ao menos fora. Esses são registros de seu ultimo dia viva, é certo que são falhos, mas já servem pra algo. – ela revirou alguns papeis resgatando da pequena pilha uma imagem de uma menina – veja essa é você.
Era? Peguei a foto em meus dedos sujos e trêmulos. Embora fosse um gesto singelo a sensação de novo era desconcertante. O calor aumentou enquanto me sentia infantil. Ignorando a raiva daquilo eu me foquei na imagem. Aquela era eu? Algo atrás da muralha sussurrou que sim.
Uma garota de rosto oval e fino, cujo nariz arrebitado se franzia conforme sustentava um sorriso gentil. Mesmo a imagem sendo preta e branca era possível supor que seu cabelo deveria ser daqueles loiros platinados, pelo modo como aqueles cachos estavam representados em branco, também supôs que seus olhos fossem claros, não verdes como os de minha companheira aqui ao lado, mas talvez castanhos claros, quase mel a julgar pela tonalidade cinza escura da imagem. Toda a expressão da garota era sincera e satisfeita, como se não se importasse de estar sendo fotografada, como se aquele sorriso feliz não fosse uma mentira bem ensaiada. Eu aproximei mais a foto para contar as pequeninas sardas que se instalavam abaixo de seus vivos olhos, não eram muitas, e traziam um certo charme inocente a sua face. Ela era em seu todo bem atraente. Aquela era eu. Um Eu sem nome atualmente.
– Até que você era uma garota bem afeiçoada não? Uma boneca, tamanha a inocência que seu rosto concentrava – a garota ao meu lado disse, e seu tom ácido me afastou de minha analise e como um relâmpago minha mão voou a meu rosto gélido como neve. Isso a vez rir – acalme-se, seu rosto está intacto! Eu estava apenas me referindo à parte da inocência.
Eu a encarei, confusa.
– Ora minha querida, não é como se as crianças fossem correr para você de braços abertos. Você transpira morte, e seu rosto por mais belo que se mantenha sempre terá uma aura de perigo constante. As outras pessoas talvez não notem o que você é agora, mas elas vão sentir o quão errada você na verdade é. O lance da inocência acabou.
Eu suspirei aliviada, sentindo o tambor socar minhas costelas com mais calma. Minha mão escorregou de meu rosto intacto, eu as olhei com pesar, estavam sujas e o esmalte de renda se encontrava lascado e manchado.
– Deus, você ainda é tão fútil quanto me lembro – e seu corpo inteiro sacudiu-se com seu divertimento.
Eu me virei para ela como um relâmpago, os olhos inquisidores a fuzilaram com dezenas de perguntas, em um desespero instintivo. Você se lembra de mim? Quem diabos é você? Porque sinto como se você fosse familiar? Porque não me lembro de mim? Como diabos vim parar aqui?!
– Você me conhece? – o tom infantil foi mais do que inevitável naquela situação.
– Você não me conhece?! – seu tom impaciente era latente.
– Sim e não, algo em você me soa familiar, mas... No momento você não me passa de uma estranha – eu dei ênfase a ultima palavra sem querer, pois ela era estranha em dezenas de maneiras.Estranhamente familiar.
– Você não se lembra de você?!
Eu neguei. E isso doeu.
– Não sabe seu nome?
Eu neguei.E isso me enjoou.
– Não sabe como morreu?
Eu neguei.E isso me desesperou.
Ela exasperou-se, pondo-se de pé ela andou de um lado para o outro diante de mim, as mãos correndo por seus cabelos febrilmente. Por fim ela estacou diante de mim, os olhos impacientes, o rosto ansioso.
– Pois então lembre-se! – sua voz um comando, uma ordem clara e sonora. A palavra mágica que me faltava.
Como em meu peito, uma forte pancada irrompeu em minha cabeça, era o muro estilhaçando-se, eram as memórias me atacando. Resistir era impossível, assim como evitar um grito era ridículo. Eu voltei a me afogar e desta vez não houve musica para me salvar. Um turbilhão de imagens emergiu para me assombrar. Gritos, risos, mãos invasivas, cheiro de bebida, socos desferidos, e chutes recebidos. A dor da memória era tangível, eu podia senti-la e isso me assustou, eu quis me afastar, mas por mais que lutasse mais ela tratava de se aproximar. Eu vi os rostos deles, eu me lembrei deles. Eu morri.
– Droga, qual é... Não vais inventar de morrer agora. Tanto esforço para nada? Eu não admito... Acorde – eu pisquei desorientada com os laves tapas que levava.
Arfante eu me sentei em um movimento rápido demais, assustando minha companheira.
–Mas que diabos, o que deu em você? – ela exigiu saber, uma ordem difícil de esquecer.
–Eu me lembrei – disse atordoada.

Capítulo 4

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