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Ficamos paradas por alguns minutos, em completo e mórbido silencio. As memórias agora assentavam. Lembranças mais antigas de uma vida que agora não era mais minha. Eu quis chorar, mas não havia lagrimas para lamentar. Eu quis gritar, mas não havia ar em meus pulmões. Lembrei-me de respirar, e me assustei quando notei que isso não era necessário. Oxigênio já não me era algo importante.
– Eu me lembro de você – disse quando a encarei e uma lembrança conectou sua imagem a uma pessoa – você é a garota do fundo da sala... A única que tirou 10 no trabalho da Inquisição. Megan, Megan Foster.
Ela encolheu os ombros, mas era possível ver seu orgulho transbordando de seus olhos de gato.
– Era um tema muito fácil – ela disse indiferente.
– Você é o que? Uma macumbeira ou fada madrinha?
Ela me encarou com uma sobrancelha levantada, dividida entre se sentir ofendida ou seguir em frente.
– Na verdade eu gosto mais do termo feiticeira. Mas dentro das circunstancias melhor Fada Madrinha do que príncipe encantado.
Eu não entendi a piada, foi então que meus olhos se recaíram sob seus lábios novamente.Vermelhos...um vermelho curioso...que parecia...sangue...sangue seco. Meus olhos dispararam para o cadáver do galo ensangüentado e como um raio levei as mãos a minha boca e voltei com os dedos sujos de um sangue seco.
– Que diabos você fez?! – eu disse histericamente.
– Sacrifícios são necessários – ela revirou os olhos como se fosse algo obvio – Uma vida pela outra. É preciso sangue pra despertar uma alma errante.
– Você me beijou?!
– Vai por mim, não foi à coisa mais agradável. Não que você não beije bem, é só que eu prefiro algo mais caliente – e ela riu de sua piada.
Tratei de superar o fato. Ela havia me beijado e não havia como voltar. E de fato eu não queria voltar. Se beijar era necessário para me reanimar, então eu devia me calar e aceitar.
– E o que eu sou? – perguntei curiosa – Um zumbi? Eu posso erguer carros agora? Quebrar paredes e ...
– Hei calma ai! Você é uma morta-viva, não uma vampira – ela me olhou cautelosa.
– Morta-viva – murmurei o novo termo – soa melhor na televisão.
– Hei, fique satisfeita. Você tem um cérebro, e consegue formular frases. Por acaso queria apenas rosnar e comer carne? – eu neguei apressadamente, torcendo o nariz com a imagem – pois então pare de com essa euforia e lembre-se de algo mais.
Eu olhei ao redor, procurando pela pasta de minha morte. Ela a estendeu pra mim, e eu a agarrei ansiosamente. Eu a abri relutante, vasculhando atrás dos papeis, algo me chamou a atenção. Recortes de jornal. Não me interessei pela manchete que anunciava a morte de uma garota em um baile escolar, álcool e drogas eram relacionados a mim. Isso me enfureceu. Havia algumas fotos, tiradas no velório. Reconheci a mulher magra e loira artificial escondia atrás de óculos de grau, era minha mãe debruçada sobre meu caixão aos prantos. Havia ali também meu pai, alguns primos, vizinhos e tios que jamais vi. Todos reunidos para o evento. Havia professores da escola, alguns colegas de classe e... Eles. Eu quase rasguei a imagem tamanha a fúria colérica que queimou o véu abaixo de minha pele. Ali estavam, em uma fila, todos de preto, os olhos baixos, serio e sóbrios. Que bela encenação. Meus assassinos em meu funeral. Talvez conferindo a veracidade do fato? Estava eu realmente morta?Deveriam ter esperado um pouco mais para ter garantido.
– O que disseram sobre minha morte? – perguntei, pois eu não queria ler mais nada.
Megan cruzou os braços, os olhos perspicazes cintilavam certa satisfação. Finalmente havíamos adentrado o tópico tão esperado.
– Você não passa de um lamentável e inesperado acidente. Uma adolescente que bebeu demais, se aventurou pelo colégio, cai da escada, bateu a cabeça e se afogou. Fim de Historia.
– E quanto a eles? – eu apontei furiosamente para a imagem de Tiago e sua equipe de assassinos.
– Há eles são os heróis. Bons samaritanos que encontraram seu corpo boiando – sarcasmo jorrava de suas palavras.
– O que?! – eu gritei escandalizada. Se não bastasse me matar ainda se deleitam na ousadia de bancarem as boas almas? Definitivamente o senso de humor deles ultrapassava o sádico.
– Pois é. A vida é engraçada, não? – ela disse levantando-se despreocupadamente.
– É cruel e com péssimo senso de humor – disse estarrecida, ainda largada na terra revirada. Eu novamente olhei ao redor, pois caso continuasse a encarar aquelas imagens poderia sem demora morrer novamente. Morrer de ódio.
Eu voltei a encarar meu antigo túmulo, agora profanado pela minha ressuscitadora. Deveria ter dado trabalho. Havia muita terra fora daquele buraco agora. Um enorme esforço. E para que?
– Você cavou isso tudo sozinha? – eu disse curiosa, ela sorriu para mim em concordância dando um tapinha na pá agora cravada na terra – e pra que?
– Eu não posso ser uma boa samaritana também? – ela perguntou enquanto guardava algumas coisas dentro de sua bolsa, como um grosso e velho livro, velas e fósforos.
– A garota que tentou atacar a evangélica da escola que queria lhe converter está querendo que eu acredite que possui uma alma caridosa? – disse descrente.
– Foi um episodio para historia não? – ela disse rindo das memórias que minhas palavras lhe traziam.
Eu concordei com um aceno, sem querer me desviar do assunto principal. Mas ela não respondeu de imediato. Se ocupou de guardar algumas coisas mais antes de se virar para mim. O rosto repentinamente sombrio e calculista.
– A vida é realmente engraçada não? Os fortes estão sempre sendo banhados em gloria e veneração, por mais que se mostrem indignos de tantos benefícios – ela apontou para as imagens - Enquanto que os fracos se resumem entre os adoradores e os sofredores, e não importa qual seja, todos acabam por perecer – ela apontou para mim.
– Do que esta falando?
– Da injustiça! – ela disse com veemência – da desigualdade que vivemos em todos os cantos. Sempre acuados e humilhados por aqueles cujos membros são fortes o bastante para nos refrear, ou as influencias são vastas o bastante para nos calar. Eles mantêm o poder para si, e como se não bastasse tem o prazer de nos torturar com ele.
– Aonde quer chegar?
– Não se sente injustiçada? Não sente o ódio que faz seu coração bater agora? Não sente a dor de ter sido arrastada da vida? Eles lhe transformaram em Nada! A angustia que lhes impuseram lhe prendeu ao Nada, lhe tirou a oportunidade de seguir. Seu rancor a reteve. Rancor este que é culpa deles!
Eu senti cada palavra sua. O véu se aquecia, estimulado com as frases e lembranças que queimavam sob minhas retinas. Eles me mataram. Cruel e covardemente. Sem misericórdia. Eu me corroí de angustia e rancor por tudo aquilo. Eu estava fadada a prisão do esquecimento. Eu havia perdido o vale para seguir adiante. A luz no fim do túnel jamais se acenderia para mim. Não enquanto esse rancor permanecesse. Não enquanto eu não fosse vingada.
– Se não bastasse me matar... - eu murmurei asperamente encarando a foto de meu corpo boiando de barriga para baixo em uma piscina de sangue – o que tem em mente?
– Eles não merecem o status de vencedor. Eles precisam de alguém que lhes lembre que eles não são Deuses. – ela disse aproximando-se de mim com um olhar ansiosos – precisam lembrar do real significado do medo.
– Então você me trouxe de volta só para matá-los? – eu não me encontrava ofendida com o fato, pelo contrario. Sentia certa satisfação em ter a honra de dar fim a aquelas almas desgraçadas. Eu seria a ferramenta da justiça. Piegas? Sim. Revoltante? Nem pensar.
– Matá-los? Deus não, nada disso – ela me encarou confusa.
– Como assim não? – eu soei indignada e irritada.
– Por acaso você já ouviu falar de Karma? – ela disse displicente, virando-se para pegar o cadáver do galo – pode imaginar o tamanho da energia negativa direcionada a minha pessoa se uma criatura que eu dei a vida matasse quatro pessoas?
Eu podia imaginar muita coisa. Os gritos dos infelizes. Meus risos. E sim eu podia ter uma leve noção do Karma de Megan após tudo isso. Agora supor que eu me importava era mais do que ridículo.
– Você matou o galo, isso também não é ruim?
– Por favor, não me lembre da pequena maré de azar que vai me assolar amanhã.
– O que vai acontecer? Sua vassoura vai quebrar a caminho da escola e você vai torcer a perna quando cair? – eu estava começando a me irritar, pois algo em mim me dizia que ela podia me impedir.
– Veja só quem ressuscitou o senso de humor – ela disse asperamente arrastando o cadáver do animal e largando ao seu lado, enquanto se curvava em sua bolsa e caçava por algo.
Eu lancei um olhar áspero à pasta a minha frente. Uma enorme tragédia banhada em mentiras e dor. Era assim que se resumia a minha morte. Morte esta que eu iria vingar. Afinal de contas eu queria seguir, e para isso eu precisava me divertir antes.
– Na verdade o plano é você assustá-los pra valer. Sabe, quebrar alguns de seus braços, dar fim em seus carros. Um trauma pra vida inteira, daqueles que os faça sonhar e urinar. Que terapeuta nenhum vai conseguir concertar – Megan falou distraidamente enquanto tentava tirar do cão de quinquilharia de sua bolsa um saco plástico preto. Fiquei me imaginando dentro de um deles... E isso me enfureceu ainda mais.
Eu estreitei os olhos incrédulos. Tanto potencial e Megan se limitava apenas a botar medo. Isso explicava seu baixo nível de popularidade, numero restritos de amigos e alto índice de desprezo alheio. Ah se a vida me tivesse dado tal potencial. Eu jamais teria morrido para inicio de conversa. Como que um milagre de natal, a lamina da faca que jazia na grama maculada de sangue animal cintilou para mim, com dezenas de idéias e possibilidades. Ela estava manchada pelo sangue do galo, certamente fora o que Megan utilizou para matá-lo. Eu teria a decência de limpa-la antes de usá-la novamente. Afinal eu devia a Megan.
– Fale-me mais sobre esta minha nova condição de vida – eu disse enquanto fechava a pasta e me levantava lentamente, evitando chamar demais sua atenção.
– Bem, eu vou falar o resumo básico, porem essencial. Teremos tempo para discussões e debates mais tardes – se dependesse de mim não teríamos, não – você não é um zumbi. Na cadeia alimentar você está acima dele podemos dizer assim. Em resumo você é exatamente como era antes de morrer, só que agora é fria, sua pulsação é fraquíssima e não tem sangue dentro de você. Você é mais forte que um humano comum, mas não pode levantar carros ou destroçar paredes, talvez quebrar maçanetas, mas... Não sei ao certo. Armas não lhe matam, tipo tiros e coisas do tipo. Você também não morre asfixiada, então agora pode nadar à-vontade – ela riu de sua piada estúpida, eu a ignorei e tratei de me agachar para pegar a faca.
– Você não parece muito certa disto. Quantos você já ressuscitou?
– Eu te disse, eu nunca ressuscitei um humano antes – ela disse enfiando o galo dentro do saco e tratando de um apertado laço.
– Mas disse que trouxe outras almas de volta. Quem seriam essas? – minha pergunta soou muito como exigência.
– Eu ressuscitei Rubi – ela disse encolhendo os ombros, enquanto se virava para me ver, eu tratei de esconder a faca nas minhas costas.
– Quem é Rubi?
– Meu gato – ela disse enquanto andava na minha direção, eu me desviei dela habilmente escondendo minha arma, mas a face confusa com suas palavras.
– Espera um instante, está me dizendo que eu fui trazida de volta por uma ressuscitadora de gatos?!
– Hei, veja lá. Rubi é da família tá legal. Alem do mais o pobrezinho caiu do qüinquagésimo andar. E sabe como é difícil trazer um gato de volta? Aqueles bichos ficam sempre na fronteira entre os dois lados que é difícil arrastá-los para o nosso plano.
Eu cerrei os dentes, receosa. Deus queira que eu não comece a miar ou queira caçar alguns ratinhos. Megan ignorou meu momentâneo ataque de pânico e jogou o saco de lixo dentro de minha cova, e tratou de pegar a pá e começar a devolver a terra a seu devido lugar. Um sinal claro que ela não mais me devolveria pra lá.
– Onde eu estava... Ah sim... Advertência numero Um, nada de brincar com fogo, é serio ele vai te queimar sem pestanejar. Numero Dois, fique longe de lugares sagrados tipo igreja, a não ser que você queira sentir uma enorme dor de cabeça. Três, e preste atenção, caso seu coração comece a bater muito rápido... Igual quando você acordou, trate de se acalmar, respirar fundo, fica parada, porque se ele voltar a bater daquele jeito por muito mais tempo, você morre, definitivamente. Dizem que comer carne quando isso acontece faz o coração desacelerar rapidamente. Então, mantenha sempre um bife a bolsa.
– Mais alguma coisa que eu deva considerar – eu disse aproximando-me com passos silenciosos e premeditados. Ela estava de costas para mim, trabalhando distraidamente.
– Não que eu me lembre no momento.
– Por acaso eu estou de algum modo ligada a você. Sua força vital, ou seja lá o que, é necessária para minha existência? - eu disse afastando a faca de minhas costas e firmando ela em minha mão gélida.
– Na verdade no livro não tem nada disso. Não fizemos nenhum pacto de sangue para estarmos vinculadas uma a outra – eu sorri satisfeita – mas na verdade eu quero testar uma coisa que pelo que observei não é mero rumor.
Eu estava a centímetros dela, pensando onde atacar, relutando à espera de alguma nova informação útil que ela fosse soltar. Megan parou de cavar o monte de terra, cravando a pá na grama.
– Você realmente não ira me deixar matá-los? – eu perguntei uma ultima vez, dando-lhe a chance de ouro.
– O que? Mas é claro que não... - ela se virou para me encarar, e seu rosto estava irritado naquele instante.
Mas foi só um instante. Assim que se virara para mim, deixando a mostra todo seu tórax a mercê de minha lamina eu lhe agarrei pelo pescoço fechando sua garganta, ela me encarou incrédula com os olhos arregalados. Por um instante eu hesitei. Droga ela me dera à vida. Mas eu precisava me vingar. E ela jamais iria me deixar. Não havia escolha...
Eu me agarrei ao punho da faca e a alojei próximo ao ventre de Megan, se minha memória não estivesse equivocada e meus conhecimentos escassos de biologia não estivessem errados, aquele golpe não a mataria. Somente lhe daria algumas boas horas de dor, litros de sangue desperdiçado, e uma ficha no ambulatório. Ela gemeu desesperada, suas mãos agarrando-se a meu braço. Apenas um golpe que a manteria longe e calada o bastante para que eu pudesse ir me divertir.
– Você devia ter dito Pare – sussurrei em seu ouvido enquanto um sorriso sombrio curvava meus lábios prevendo minha diversão.

Capítulo 5

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